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14 de mar. de 2011

"E fica a sensação de saber exatamente porque menti [...]"

Mesmo que fosse difícil de compreender, Francisco continuava a trabalhar naquilo, apesar de todos os lados negativos: o retorno não era bom, lhe trazia riscos de vida, e, como se não bastasse, nem tudo do que havia sido combinado verbalmente constava no contrato assinado pelo peão. A espera pelo décimo terceiro, por exemplo, era inútil, pois não estava no papel do vínculo empregatício estabelecido. Mas ele ainda apostava naquela loteria de morte e sofrimento, na crença cega de que algum dia receberia algo em troca, nem que fosse o mínimo, pois para ele bastava o necessário para se viver.

Aquilo incomodava Jack, chefe do peão de laboratório, pois saber que mentia para alguém tão dedicado e trabalhador pesava a sua consciência. Ele era machucado todos os dias pela imagem que o atormentava desde o primeiro dia de expediente dos novos contratados: o peão chegando feliz e sorridente ao emprego, uma hora antes do laboratório abrir, e prometendo ser o melhor servidor que ele já teve. É claro que o dono da clínica não havia acreditado. Para ele só restava a dúvida descrente a quem muito falava antes de provar qualquer tipo de coisa, ainda mais quando se tratava de Francisco, que não havia se destacado na entrevista de emprego.

Olhando pra trás quem diria que seria dessa forma? Quem diria que depois de duas semanas de trabalho o mero peão teria se tornado o melhor funcionário da clínica e a produção teria sido duplicada?

Foi a partir dali que o peso em cima de Jack, que já existia antes, se tornou realmente um grande fardo a ser carregado. Pois ele viu que não havia bem um motivo que justificasse as mentiras no contrato, e que na verdade o salário do humilde Francisco deveria ser maior que o dele. Mas a situação só piorava com o passar do tempo, pois aconteceram uma série de coisas que deixaram Jack ainda mais desconfortável: o seu funcionário preferido teve uma queda brusca de rendimento e teria que ser demitido, Francisco a cada dia que se passava aumentava a culpa dele sendo dócil e eficiente, ele havia passado pela descorberta de um problema de saúde de gravidade desconhecida. Tudo conspirava para que ele se mergulhasse no fundo de um poço qualquer, pois a vergonha e a sensação de estar fazendo mal a melhor pessoa que já havia conhecido o corroía.

Mas Francisco não permitia que acontecesse essa corrosão. No momento em que Jack mais precisou de um ombro amigo Francisco percebeu e esteve sempre ao lado dele, mantendo o patrão bem. Isso foi incrivelmente determinante para Jack tomar a decisão de trocar de posto com Francisco. E num gesto de gratidão Jack deu a Francisco seu salário, seu respeito em meio aos peões, se submeteu a situações constrangedoras e pegou algumas mentiras para as pessoas que o cercavam.

Pobre Jack! Sua ingenuidade se fez valer mais uma vez. Pois Francisco, assim que assumiu esse posto, se fez covarde e indeciso, e apesar de ser sempre um ombro amigo, fez Jack se submeter a coisas que ele não gostaria de ter passado no laboratório. Jack se afastou de todos os peões de bom agrado para se dar exclusivamente a Francisco, procurava todos os meios de não desagrada-lo, tentava ao máximo demonstrar seu apreço pelo ex-peão. Mas infelizmente isso não era retribuído da mesma maneira. Até porque, Francisco não havia se comprometido com nada disso. Jack fez tudo porque ele queria fazer. Na verdade ele não foi obrigado a fazer nada, tudo o que ele fez por Francisco foi pela gratidão e pelo sentimento que o apoio de Francisco havia criado.

Agora a Jack só restava um emprego inferior, um sentimento não correspondido, uma insegurança quanto a seu futuro e uma profunda tristeza por ter sido tão ingênuo mais uma vez. Jack espera demais das pessoas que ama, ainda mais quando acha que isso é recíproco, e por isso se doa extremamente a mínima coisa que apareça. Mas Jack se esquece que nem todos tem o mesmo jeito de pensar e agir.

Agora Jack se arrepende de ter mentido, mas Jack entende que ele, de certa forma, previa toda essa situação. A descrença apresentada por ele no início foi a mesma descrença que Francisco teve quanto as tentativas do ex-chefe de demonstrar gratidão. No final, as mentiras de Jack foram válidas, apesar da dor que o causam e causaram, pois mesmo não existindo um contrato declarado, no fim Francisco também não havia cumprido suas "obrigações". A profecia da mesma moeda foi cumprida, e assim só falta a Jack acertar sua vida dentro do cargo que ele mesmo se deu, mesmo com todos os riscos...

2 comentários:

  1. A parada é sempre não se entregar completamente
    é sempre um erro que a gente sempre comete :S

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  2. Mas e se esse erro foi cometido propositadamente? E se o erro não for um erro? Quando Francisco apostou na loteria de morte ele recebeu sua recompensa. Agora Jack não espera o mesmo, mas sonha com o mesmo.

    Percebam que nenhum acontecimento nesse texto é contra a vontade de seus protagonistas crianças.

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